“Ela não faz nada”- Isso ficou ecoando na minha cabeça. Primeiro imaginei ela sentada na poltrona de ma sala o dia todo sem fazer nada. Os objetos da sala estáticos como ela e só o ponteiro do relógio de parede se movendo. Ou será que ela fica o dia todo de pé, encostada na parede do corredor? Pode ser… um corredor com papel de parede estampado rosa e bege clarinho, carpete no piso… uma coisa assim, bem gringa, e ela lá o dia todo, sem fazer nada.
Enfim, minha cabeça “parque de diversões” se cansou de imaginar essas cenas e começou a lentamente abrir a caixinha de pandora.
Acontece que, além de ser casada com Renato, Carol também é mãe do filho deles e topou mudar pra Espanha junto com o marido e o filho quando ele recebeu uma proposta de emprego. Simplesmente não é possível que uma mulher, que também é esposa e mãe, não faça nada o dia todo. Sei disso porque eu, assim como a Carol, já fui uma esposa exausta que “não faz nada” o dia todo.
Ao abrir a caixa de pandora recebi um suave soco no estômago que me deixou pensando calada por horas a fio e depois me fez sentar aqui pra colocar esses pensamentos no papel.
“Não fazer nada” é um trabalho demandante 24/7. Não tem férias, não tem 13o ou bônus de fim de ano. Descanso aos finais de semana também não tem, eventualmente podem rolar umas horas de folga no sábado de noite, ou no almoço de domingo mas, via de regra, não rola.
Colegas de trabalho pra desanuviar dos perrengues também não tem, é um trabalho solitário. E statuspra falar sobre o seu trabalho no jantar com os amigos também não vai estar tendo.
Mas tudo bem né? Afinal minha gente, é o trabalho mais nobre que existe e convenhamos, ele é sussa!
A labuta começa por volta das 6h, é cedo, eu sei, mas o bom é que não tem deslocamento, não precisa gastar com gasolina e estacionamento, pegar trânsito, essas coisas. Olha só quanta vantagem! Então começa cedo e já precisa preparar as crianças pra escola, levar o cachorro pra passear, arrumar as camas, por roupas pra lavar, e começar a preparar o almoço. Vai cozinhando e varrendo a casa, arrumando os quartos, a sala, o banheiro, recolhendo roupas pelo chão, atendendo telefone, regando a planta, recebendo técnico de tudo o que quebra. Busca na escola, serve almoço, lava louça, pendura roupa, recolhe roupa, guarda roupa, leva criança pra aula disso e daquilo, passa no supermercado, prepara o jantar, dá comida pro cachorro, põe a criança pra fazer lição -muitas vezes tem que fazer junto e finalmente chega o seu companheiro, mas ele tá cansado e quer muito um banho pra tirar o dia estressante da cabeça. “Claro amor, vai lá”. Empatia, né gente? Se tiver sorte, terá disposição pra tentar fazer uma aula de yoga enquanto ele cuida de “tudo” ou, pior, “te ajuda”. Depois, volta pra casa, coloca as crianças pra dormir lendo uma história na cama, toma banho, come, dorme. Repeat. Over and over. Super relax. Quem precisa de férias quando “não se faz nada” o dia todo?
Precisa dizer que isso é fazer bastante coisa? Precisa dizer que isso cansa pra caramba?
Indo um pouquinho além desse óbvio ululante, esse trampo tem, além do cansaço físico, uma super carga mental e emocional.
Essas cargas podem derivar de diversas fontes, depende muito de como cada pessoa vai sentir, não acho que tenha uma regra. Mas vou te contar o que foi que pesou mais pra mim, quem sabe você se identifica e pode, a partir do meu relato, repensar um pouco essas relações, esteja você do lado da história que estiver.
A primeira coisa que me lembro que pesava muito era um permanente estado de atenção e alerta para dar conta de todas as responsabilidades que nunca acabam.
Me recordo de um conflito recorrente que eu tinha com meu ex-marido: eu ficava P da vida porque tinha que fazer tudo sozinha. E ele dizia com a maior boa vontade: “é só você me pedir que eu faço”, ao que eu respondia: “eu não quero ter que pedir! Pedir é chato! Eu quero é poder tirar essa preocupação da minha cabeça, quero que você tenha a iniciativa de carregar esse problema dentro de você e assim eu me libero espaço para ocupar com outras coisas”. Éramos jovens e imaturos, hoje isso me parece um conflito gerível.
Recentemente, vi um post super ressonantesobre o tema que me alegrou demais pois é um sinal de que esse assunto já não está mais tão debaixo do tapete. Me senti contemplada em uma demanda que antes era tachada como uma “reclamação de uma mulher sempre descontente”.
A falta de interação social que o trabalho doméstico imprimetambém foi uma questão que me pesou.Eu ficava praticamente sozinha o dia todo.
Antigamente, ouço dizer, tinha toda uma rede de apoio: vizinhos, parentes, comadres. Hoje, é um trabalho solitário. Mal conhecemos nossos vizinhos, quem dirá interagirmos no dia a dia.
E não é a falta só no dia a dia. Não é só a falta dessa rede de apoio ali na labuta conjunta. É também a falta do social após horas de trabalho, com pessoas variadas, em lugares diferentes, gente nova, novos ares. É a falta de se sentir interessante e contar para os amigos com empolgação sobre aquilo o que você faz. Infelizmente a empolgação com a nova fórmula do produto de limpeza caseiro que você descobriu ou a alegria por ter conseguido tirar a mancha da blusa clara não costuma ser um papo que gera muito interesse.
O trabalho doméstico, imprescindível a todos, é muito desvalorizado — por todos.
O silencioso trabalho de educar sobre o qual pouco ou nada se fala, mas que é um puta trampo e, como ninguém quer fazer mas alguém tem que, esse alguém geralmente é quem “não tá fazendo nada”.
Farei um recorte para falar só sobre os (muitos) momentos em que você precisa dizer "não”.
Dizer não é muito chato. Dizer não é um pé no saco. Dizer não é tipo ter que comprar uma briga quando você não quer brigar. É ver uma armadilha no seu caminho e tentar sair ilesa. Dizer não é parar tudo o que você está fazendo e ofertar seu tempo com devoção para educar. Dizer não de forma construtiva dá muito trabalho e consome tempo. Implica em ouvir o outro, acolher, depois argumentar, sustentar o argumento, implica muitas vezes em sustentar uma certeza desconfortável, que você nem sabe se tem mesmo, fazer uso da autoridade e todos os desafios que vem com isso: estou sendo muito autoritária? Estou certa na minha decisão? Deveria ceder? Se ceder agora abrirei precedente? Posso mudar de ideia? Como acabo com essa discussão sem agressividade?
Enfim! Uma loucura.
Costumava explicar para os meus filhos que pra mim seria muito mais fácil dizer sim, ignorar toda a problemática envolvida com o pedido deles e seguir com minha vida. Mas porque eu os amo e os quero bem, eu precisava dizer não. Às vezes implorava: “pelamordedeus, confia em mim e não vamos ficar debatendo horas sobre esse tema. Aceita meu não”. Doce ilusão…
Por fim, o que eu levei mais tempo para descobrir e que foi mais dolorido, foi o sufocamento de todo um manancial criativo latente por se manifestar e constantemente reprimido porque tem outras coisas “mais importantes e urgentes” para serem resolvidas.
Tenho uma palavra para você: interrupções. Vivemos coletivamente a pandemia e vi muito marmanjo desesperado pra sair de casa porque “não conseguia trabalhar” com tantos barulhos e interrupções. Bem-vindos ao mundo das mulheres que “não fazem nada” o dia todo.
Coloca essa carga no ombro de uma pessoa uma vida toda pra ver no que dá: primeiro vai te sufocando, gerando agonia e estresse. Isso se transforma em uma morte lenta da criatividade porque você vai parando de tentar. Aos poucos, te mata e então te transforma em um zumbi. A pessoa começa a ter dores que não tem explicação médica, vai entrando em depressão, é uma tristeza de se ver — e já vi muito.
Agradeço profundamente minha rebeldia por não me deixar desistir de mim mesma e me resgatar na hora certa, antes que eu virasse um zumbi.
Esse é o cenário que a caixinha de pandora aberta projetou pra mim quando ouvi que a Carol esposa do Renato não faz nada.
E é a partir desse cenário que eu me pergunto porque é que o trabalho doméstico AINDA só é cobrado das mulheres? Claro, é uma cobrança disfarçada de escolha ("você faz porque quer, ninguém tá te pedindo") e igualdade ("me pede que eu faço") — só pra ser mais cruel e fingir que a culpa é sua.
A estrutura está aí, disfarçada mas funcionando a todo vapor e acredito que em grande parte também nós, mulheres, seguimos alimentando ela. Fazemos isso sempre que nos cobramos dar conta de tudo, não falhar, sempre que desistimos de fazer algo divertido só pra manter a ordem e a disciplina dessa perfeição inalcançável. Fazemos isso porque temos incutido patologicamente no nosso âmago vozes cruéis que nos julgam e nos condenam.
Já para os homens, o trabalho doméstico é uma opçãoe eles podem mudar de ideia a qualquer momento numa boa. Sem julgamentos.A prioridade deles pode ser outra. O espaço de opção pelo mais fácil sem julgamentos, pelo deixar bagunçado, pelo “não fazer isso para poder fazer aquilo", o espaço para o não discutir e ceder aos pedidos e desejos dos filhos, mesmo quando eles são ruins (ainda que socialmente aceitos) só pra poder continuar a fazer o que se está fazendo, esse espaço só pertence aos homens porque afinal, com espaço a pessoa prospera e prosperar é tudo o que o patriarcado não oferece para as mulheres e para o feminino.
Então, aos homens, o espaço para exercer a imperfeição.E, ao exercê-la, a normalidade, a leveza, a diversão e toda a criatividade decorrente dessa secreção hormonal de bem estar. Para as mulheres, um cercadinho com regras, cobranças e julgamentosdentro do qual elas podem fazer tudo o que quiserem! Mas para as que ousarem exercer a imperfeição: louca, irresponsável, incapaz, uma má mãe, né?
Mas calma, gente! O mundo não acabou. Vamos nos conscientizar de que o trabalho doméstico é um puta trampo e vamos chamá-las de guerreiras, vamos premiar de vez em quando as que dão conta de tudo às custas de sua sanidade mental, de sua liberdade de escolhas, de seu direito de ir e vir, de seu tempo, de seus desejos, às custas de sua vida toda, com o reconhecimentopor tudo o que faz. Parabéns guerreira! Toma essa flor e esse perfume. Eu te amo, viu? Te escravizo, te sufoco, cerceio tua liberdade, te julgo, mas sempre lembro de você com muito amor e reconhecimento por tudo o que você fez. Parabéns!
Amadas manas. Vamos combinar de não abrir mais mão de fazer coisas legais pra dar conta de tudo? Vamos lutar pelo direito de exercer a imperfeiçãoexercendo-a?
Hoje eu luto pela minha paz interior nesse lugar. Busco acolher essas vozes internas que me julgam e condenam dizendo pra elas que sim, elas tem razão, estou falhando. E está tudo bem com isso.
Amados manos. Bora se apropriar mais do trabalho doméstico? Bora tentar ser um pouquinho mais disciplinados com isso?
Pronto. Podemos fechar a caixinha de pandora, por enquanto. Espero que esses pensamentos saídos diretamente da minha intimidade contribuam um pouco para que a gente vá colocando o trabalho doméstico no lugar que ele merece: destaque. Porque ninguém prospera sem uma pia limpa, uma roupa lavada, uma cama arrumada e uma mulher descansada